Maria Elisabeth Blanck Miguel*, Silvana Cassia Hoeller **
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Résumé : Cet article étudie, via une revue de littérature et une analyse des cadres réglementaires, la transition des politiques d’éducation rurale vers les politiques d’éducation do campo. Sont explorées les racines de l’éducation rurale au Brésil et une société qui s’est structurée en invisibilisant les particularités des habitants des campagnes. Avec la re-démocratisation du pays, les mouvements populaires se sont réorganisés et les revendications d’une éducation do campo sont venues s’opposer à l’école rurale au sens politique, social et culturel, et au concept d’éducation rurale. L’éducation do campo s’est consolidée au début des années 2000 et pénètre désormais les plans éducatifs de l’État fédéral, des États et des communes.
Mots-clés : éducation do campo, enseignement rural, cadres règlementaires
Resumo : O artigo tem a intencionalidade de compreender o processo histórico da educação rural, a partir das categorias da contradição e da totalidade.Este estudo se constitui em um ensaio bibliográfico, que busca refletir e repensar a educação rural, fundamentado em autores e marcos regulatórios, do Brasil colônia ao final da década de 60. O texto principia com a busca das raízes da educação rural da sociedade latinfundiária e segue resgatando a influência internacional, dialogando com autores que possibilitam uma compreensão das contradições referentes ao desenvolvimento do projeto educação na relação da estruturação de uma sociedade. Nas discussões, compreendemos que o sujeito que habita o rural adquire invisibilidade, pois não estava presente na articulação entre diferentes contextos históricos, se constituindo como objeto da ação do Estado, na intencionalidade de uma organização de sociedade.
Raízes da educação rural: entendendo as contradições
A realidade do rural brasileiro está relacionada historicamente à questão agrária, consequentemente à concentração de terras, ou seja, a formação das propriedades do campo se constituíram como latifúndios a partir da lógica da monocultura e do trabalho escravo. No campo temos um cenário que reúne a classe dominante latifundiária e o trabalhador rural, dentro de uma estrutura inicialmente escravocrata. Uma estrutura que nasce na contradição do latifúndio, que representa um processo de opressão e exploração dos sujeitos.
No Brasil, país basicamente agrário, a educação rural não é mencionada nas Constituições de 1824 e 1891 (BRASIL, 2001), mesmo com o surgimento do ensino rural no segundo reinado. O ensino rural principia como uma necessidade do modelo agroindustrial direcionado para a capacitação da mão de obra, ou seja, profissionalizar o campo de forma a atender as necessidades do mercado capitalista.
Essa identificação é afirmada também por Leite (1999, p. 14): “[…] a Educação rural no Brasil, por motivos socioculturais, sempre foi relegada a planos inferiores e teve por retaguarda ideológica o elitismo acentuado do processo educacional […]”. A interpretação político-ideológica da oligarquia agrária é repetida no senso comum, conhecida na expressão popular: « Gente da roça não carece de estudos. Isso é coisa de gente da cidade ». Concordo com Gramsci (1978): na linguagem está contida a concepção do mundo, e acrescenta: “pela concepção do mundo pertencemos a um determinado grupo”. Era um momento em que a oligarguia estava assentada no arcabouço da estrutura agrária, em que os sujeitos que habitam o espaço rural não pertencem a esse espaço.
A educação no Brasil Império se destinava a poucos privilegiados que estavam diretamente ligados às oligarquias escravocratas ou beneficiados pela coroa portuguesa. As escolas eram mantidas para uma pequena elite ou para os grupos de comerciantes que viviam nas vilas. O significado da educação era manter o status, adquirido na relação de contradição ou de não acesso pelas classes desprivilegiadas e /ou dominadas. O Império representa o todo e expressão do Estado.
No século XIX, sendo o Brasil um país de estrutura e características predominantemente agrário, os documentos oficiais que se referem à educação brasileira trazem elementos que envolvem a realidade da elite que se consolidava com a produção agrícola (cana-de-açúcar) e o comércio de exportação para atender a um mercado externo.
A educação atendia a um modelo de exportação, ou seja, a uma estrutura social da época. Na reforma Januário da Cunha Barbosa, de 1826, que foi aprovada como Lei em 1827, o artigo 3°, título II, enfatizava a importância dos conhecimentos agrários, obedecendo à realidade agrícola e econômica que o país apresentava, buscando relacionar os conhecimentos à realidade. Ensinava-se: “no primeiro ano do segundo grau se dará uma ideia dos três reinos da natureza, insistindo-se, particularmente, no conhecimento dos terrenos e dos produtos naturais da maior utilidade nos usos da vida” (BRASIL,Lei em 1827, art. 3); buscava-se relacionar a instrução à preparação de mão de obra, que estava caracterizada pelas expansões das monoculturas, a exemplo da cana-de-açúcar. Na última reforma do Império (Brasil, Decreto n° 7247, de 19 de abril de 1879), “estabeleceu-se que o ensino nas escolas primárias de 2° grau contaria da continuação e desenvolvimento das disciplinas ensinadas no 1° grau e mais, entre outras disciplinas, noções de lavoura e horticultura”, mantendo o interesse na preparação de sujeitos para o modelo de produção agrícola.
Ao interrogar os documentos, torna-se possível entender que um país com dimensões continentais, por ser habitado pelos povos originários, que de forma geral eram pacíficos, facilitou o intento dos portugueses ao chegar a esta terra, que não era outro senão a busca de riquezas para a coroa portuguesa. Tal intencionalidade fica explícita na organização inicial dessa sociedade colonial, em que a exploração por meio do extrativismo e a agricultura de exportação se mostraram características de consolidação e de ampliação do poder português sobre outras nações. As possibilidades de educação rural tiveram a intenção de manter o poder agrário.
A educação tem um caráter de mediação dentro de uma totalidade, em que as relações entre a partes, representada pelo processo de colonização portuguesa, o todo, se vinculava à realidade do Brasil Colônia, organizado a partir dos interesses portugueses. Estes apresentaram por meio da Doutrina Monroe em 1823, um planejamento de supremacia sobre a América Latina. De acordo com Bandeira (1978, p. 130), representava “ A America para os Estados Unidos”, principalmente com um interesse nas matérias-primas, pela via comercial. A totalidade representada pela intencionalidade americana tem um papel prepoderante na história da educação brasileira.
Além da questão internacional, o Brasil estava em uma situação de mudanças das forças internas. Com a libertação dos escravos em 1888, o Brasil sofreu uma reorganização das suas forças produtivas da época, o que gerou desconforto para as oligarquias, ocasionando um rearranjo político. Calazans (1991, p. 33) reforça dizendo que “com o advento da monocultura cafeeira e o fim da escravidão, a agricultura passou a carecer de pessoal mais especializado para o setor”. E Ianni (2004) acrescenta que entre o período da abolição até meados de 1930 houve uma expansão do café, que teve início a oeste de São Paulo, seguida da entrada de imigrantes e chegada de trabalhadores nacionais. A Lei 601, de 1850, regulamentava a vinda de imigrantes no art. 18, afirmando “O governo fica autorizado a mandar vir anualmente, à custa do Tesouro, certo número de colonos livres […]”, configurando-se uma alternativa para mão de obra, principalmente na cafeicultura. As forças produtivas se reajustam a um processo de mudança demandada pelo capital; as contradições e as mediações se fizeram presentes na condição da submissão do escravo, com a formação de um sujeito livre, mas sem condições de suprir as necessidades básicas de um ser humano em uma sociedade. O imigrante chegou aos portos brasileiros em um novo contexto, mas para servir a uma elite numa posição de submissão.
A educação foi operada dentro de uma totalidade da organização do capital, como explica a autora Calazans(1991, p. 33) sobre o momento: “as classes dominantes brasileiras, especialmente as que vivem do agro, sempre demonstraram desconhecer o papel fundamental da Educação”. Somente com o avançar do processo de industrialização do campo e da cidade foi que as classes dominantes passam a concordar com a escola, porém, entendendo-a como necessária à formação de mão de obra para atender essas novas demandas.
O trabalhador livre, passa a ser o alvo das intervenções estatais, preservando a concentração fundiária do país, que representa o poder, num país agrícola, conforme ressalta Ianni (2004). Mendonça (2010) reforça que as contradições mantêm o modelo de dominação pela falta de acesso dos sujeitos às terras, intencionando apenas ter a força de trabalho qualificada por meio de uma educação capacitadora.
A qualificação do trabalhador nacional deu origem ao ensino profissionalizante, vinculado após a Primeira Guerra Mundial a uma política de alfabetização que faz parte de um processo de reforma anunciado pelo Estado. Nessa perspectiva, Shiroma, Moraes e Evangelista (2002, p. 17) afirmam que nos anos de 1910 e 1920 era depositado na educação o papel da tábua de salvação dos problemas sociais, econômicos e políticos, e que “a reforma da sociedade pressuporia, como uma de suas condições fundamentais, a reforma da Educação e do ensino”. A educação utilizada como força de desenvolvimento individual.
Sodré (s/d, p. 13) explicita no seu livro “A Coluna Prestes” o contexto em que estava o país após a Primeira Guerra Mundial. Houve uma transferência de capitais da agricultura para indústria, visto que o país contava na região de São Paulo, com vastos cafezais[1]. “Em 1920 irrompe a crise mundial que irá afetar seriamente as estruturas econômicas dependentes” (SODRÉ s/d, p. 13). Como a oligarquia cafeeira exportadora era altamente dependente, assim, houve um estímulo para o desenvolvimento das indústrias. Essa conjuntura trouxe a educação como possível caminho para suprir a necessidade de mão de obra qualificada e direcionada para a indústria.
Com a agravamento da crise, houve um avanço dos recursos disponibilizados em forma de empréstimo e benefícios pelo sistema americano entre 1919 e 1922, ou seja, o Brasil recebeu capital de investimento estrangeiro vinculado à indústria e, conforme Sodré (s/d, p. 15): “o governo brasileiro concede favores a investimentos estrangeiros […] Agora são a Belgo Mineira e a Anglo Brasileira Iron and Steel Syndicate”. O mesmo autor acrescenta que aparece também a Electric Bond and Share, sob o nome de Empresas Elétricas Brasileiras, ou seja, apesar do capital estrangeiro que entrava no Brasil, tivemos uma saída desse capital, muito maior, pelas importações, fazendo com que a classe dominante começasse a fazer empréstimos externos: “em 1921, tomou o primeiro empréstimo em dólares – 50 milhões, prazo de 20 anos, juros de 9%, condições pesadíssimas” (SODRÉ, s/d, p. 16). Criaram-se processos de dependência econômica externa, que constituíram mudanças nos movimentos internos do país.
Esse quadro fez com que o movimento migratório ficasse acentuado em centros industriais como São Paulo[2], com as migrações vindas do campo com o deslocamento principalmente da Região Nordeste. Paiva (2015, p. 137), ao analisar essa conjuntura, ressalta que a linha política do governo em 1933, considerava o movimento migratório do campo para a cidade um dos maiores problemas da então atualidade brasileira. O lema que então vigorava era “instruir para poder sanear”. As contradições se evidenciavam com a saída dos sujeitos do rural, criando novas relações sociais em um ambiente urbano e a educação entrando como ajuste, por meio das políticas de governo.
Com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública na década de 1930, consegue-se perceber a relação que o Estado fez entre “sanar e educar”. Além disso, o “objetivo era o de criar um ensino adequado à modernização”, apresentando a ausência de “[…] uma política nacional de educação que prescrevesse diretrizes gerais e a elas subordinasse os sistemas estaduais” (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2002, p. 18).
O educador Sud Mennucci (1934) retrata a falta de oferta da educação rural nos municípios, ficando as escolas localizadas apenas na sede da cidade, e a criação das escolas voltadas ao ensino profissional.
As contradições acirradas pela concentração de terras continua e a população camponesa vê no processo de industrialização dos centros urbanos, alternativas de sobrevivência, mudança de realidade, configurando o que denomina, de êxodo rural. Camini (2009, p. 83) ressalta que esse movimento está fundamentado na “[…] expropriação da terra e proletarização da população, já iniciadas nas primeiras décadas do século XX, acompanhado de projetos de urbanização e industrialização, que expulsou um significativo número de pessoas para as grandes cidades”.
Concordando com a autora, acrescento que as contradições estavam presentes com a expulsão do camponês da terra, dando origem a uma massa de mão de obra que não encontrou na cidade uma alternativa de trabalho. O camponês não possuía qualificação para se adaptar ao trabalho nas indústrias, visto que a população rural era analfabeta. Muitos desses sujeitos retornaram para a área rural como mão de obra do fazendeiro nas funções de empregado sem terra, abrindo espaço para a formação do que Ianni (1976, p. 71) denomina de proletariado rural. Pois, como proletário,“o trabalhador rural se encontra prática e ideologicamente divorciado dos meios de produção. Ele se encontra fora da fazenda, física e ideologicamente”.
É importante contextualizar que, no período entre 1910 e 1920, de acordo com Nagle (1976), a educação, nesse contexto de totalidade, estava focada no “entusiasmo pela Educação” e no “otimismo pedagógico”, o que ajuda a compreender as motivações dos intelectuais com a questão educacional.
Nagle (1976, P. 101) define como “entusiasmo pela Educação” a crença de que, pela multiplicação de escolas e pela valorização nas questões educacionais, seria possível integrar o povo no caminho do progresso. E o “otimismo pedagógico” estaria relacionado à crença de que a educação elevaria o patamar civilizatório da população.
As contradições entre os movimentos político-sociais propunham a educação como forma de adaptar o sujeito a uma intecionalidade representada pelo progresso, em que os processos educacionais materializados em programas de diferentes grupos não significava transformar a realidade de quem habitava o rural. A educação era utilizada como mediação no processo de mascaramento de uma situação social.
Na leitura que Marta Carvalho (1989, p. 49) faz de Nagle, a autora consegue expressar as contradições que se evidenciavam nos movimentos da época. Afirma que “Na passagem do entusiasmo para o otimismo se teria produzido no movimento uma crescente dissociação entre problemas sociais, políticos e econômicos e problemas pedagógicos”.
Nesse contexto, foi fundada em 1924 a Associação Brasileira de Educação [3] – ABE, que de acordo com Marta Carvalho (1989, p. 53), era o resultado de um movimento derivado de um partido político estimulado pela revolução paulista da época. O que aglutinou os intelectuais e educadores na ABE foi “A ampliação do número de eleitores, a erradicação da ignorância como instrumento de qualificação do voto consciente, a formação e organização de uma opinião pública”. Os debates da ABE eram de amplitude nacional, cujas conferências possuíam a função de propaganda da causa educacional, sendo assim uma irradiadora do discurso cívico, vinculada a um propósito do Estado.
SegundoCarvalho (1989, p. 56), o discurso cívico da ABE sobre o papel da escola na formação do sujeito que habitava o rural vinculava-se a um estereótipo: “a figura de um brasileiro doente e indolente, apático e degenerado, alegoriza os males do país. Transformar essa espécie de Jeca Tatu em brasileiro laborioso, disciplinado, saudável e produtivo era o que se esperava da escola”. Ficava clara a função da educação de adaptação do sujeito, que não era considerado dentro das relações sociais da realidade que o cercava, mediante um processo de homogeneização.
Nagle (1976, p. 123) ressalta a importância da associação, pois “a ABE representou a primeira e mais ampla forma de institucionalizar a discussão dos problemas escolares, em âmbito nacional”, mas era composta por diferentes correntes de pensamento, produzindo movimentos contraditórios que ora fundamentavam as ações do Estado e/ou ora deixavam aparente as discordâncias.
Em 1930, abre-se um campo de renovação educacional no Brasil, que de acordo com Marta Carvalho (2004, p. 94), foi marcado por um grupo de educadores em 1932. Segundo suas palavras, este grupo se caracterizou por uma “[…] geração de educadores que se notabilizou enquanto grupo com o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, no qual firmou a defesa de um sistema único de ensino e da escola pública, leiga e gratuita”. O outro grupo rival que estava na disputa pelo aparelho educacional eram os denominados católicos. De acordo com Cury (1978, p. 151), “aliada aos interesses político-ideológicos do governo brasileiro, a Igreja Católica assume um lugar no cenário dos debates sociais e educacionais”, mas o autor deixa claro: “Os católicos ao quererem reter o que já fora, e os pioneiros ao proporem um projeto (algo que não é ainda)” (p. 189). A proposta de ambos os grupos era manter o lugar preponderante na educação brasileira, dentro do sistema econômico que estava se estruturando.
Disputa essa que vigorou até o Estado Novo. Romanelli (1986, p. 143) acrescenta que as conferências da ABE representavam o confronto entre essas duas correntes ideológicas: reformadores e católicos. Em que “laicidade, obrigatoriedade do Estado de assumir a função educadora e a coeducação – constituíram o pomo da discórdia entre educadores […]”. Enfim, os renovadores entendiam que o ensino ministrado pelo Estado deveria ser leigo e que homens e mulheres deveriam ter as mesmas oportunidades educativas. Assim, a Escola Nova nesse contexto representa uma das partes que se relaciona com o todo, no caso, o Estado, e representa uma contradição para aquele momento, com o processo vigente de educação. Mas as contradições se materializam nas relações, a partir das intencionalidades ideológicas, sem rompimento com o sistema hegemônico.
As contradições entre os movimentos político-sociais propunham a educação como forma de adaptar o sujeito a uma intecionalidade representada pelo progresso, em que os processos educacionais materializados em programas de diferentes grupos não significava transformar a realidade de quem habitava o rural. A educação era utilizada como mediação no processo de mascaramento de uma situação social.
O autor Sud Mennucci (1934, p. 47) traz a situação das escolas alfabetizadoras encampadas pelo Estado:
As classes primárias transformaram-se em polvos sugadores da energia rural, porque envenenam a alma dos filhos dos nossos lavradores, criando-lhes no íntimo a enganosa e perigosa miragem da cidade. […] Põe na cabeça da juventude aldeã o desejo louco de aprender para se libertar do fardo agrícola. […]
Na citação de Sud Mennucci (1934) emergem as contradições representadas pela desvalorização que a escola como instituição faz da cultura específica das populações locais, ignorando toda uma relação de trabalho que as famílias têm com a terra na sua reprodução, colocando o campo como um espaço de sofrimento e a cidade como o caminho para melhores condições de vida.
Paiva (2015, p. 137) faz a leitura histórica desse momento como uma tentativa de prender o homem à terra, a qual tinha na sua centralidade a adaptação, ou seja, “para tanto era preciso adaptar os programas e currículos ao meio físico” e até à cultura. As vertentes educacionais eram debatidas não a partir da realidade dos sujeitos, mas conforme interesses nacionais e ideológicos na relação com as perspectivas internacionais.
Para atender a esse desenvolvimento que acompanha a ascensão da burguesia na Europa e na América do Norte, propostas relacionadas à educação foram fruto das orientações dadas aos países latino-americanos após a Primeira Guerra Mundial. A educação passou a ser parte da agenda de discussão para os norte-americanos na “Education Policies Commission”, dos Estados Unidos, na qual se encontravam representadas aAssociação Nacional de Administradores Escolares e a Associação Nacional deEducação, dois organismos de poderosa influência na vida pedagógica norte-americana (RBEP, 1944, p. 61).
A influência internacional e os marcos regulatórios
A educação rural no processo histórico está intrinsecamente conectada aos organismos internacionais. Ou seja, na perspectiva da totalidade da relação com as partes, percebem-se como as influências externas se apresentam no rural brasileiro e acirram as contradições, mantendo um status quo. Desde 1936 há recomendações para educação rural, “Ecommendation n. 8, Concerningthe” e “Organization of Rural Education” (UNESCO, 1934-1977, p. 37). Há, em vários pontos, diversas recomendações à instrução pública, mas chama a atenção que no primeiro ponto desse documento é mencionado que a educação rural não deve ser inferior à educação urbana e que as crianças da zona rural devem ter acesso também ao ensino médio (UNESCO, 1934-1977). Mesmo com as recomendações internacionais sobre a qualidade da educação rural na relação com a escola urbana, essa desigualdade persiste e foi retratada na fala de diversos educadores, como Sud Mennucci (1934). As recomendações para a zona rural continuam, de acordo com os documentos a seguir.
Miguel (2011, p. 3), referindo-se ao mesmo documento, afirma que:
[…] a Recomendação nº 8, concernente à Organização do Ensino Rural, fazia várias recomendações aos Ministérios da Instrução Pública que orientaram o ensino rural também no Brasil. Dentre elas, a de que fosse assegurado o mesmo nível de qualidade de Educação para as zonas rurais como o proporcionado às escolas das zonas urbanas dando condições aos alunos das zonas rurais, quando da conclusão dos estudos, de acesso ao ensino médio.
Na recomendação 47, de 1958, a UNESCO se reporta novamente ao documento de 1936, ressaltando as oportunidades de acesso ao conhecimento para as crianças da zona rural, com as inovações das comunicações e do transporte, que são as mesmas oportunizadas à zona urbana:
Considering that the increasing similarity of the country to the urban way life, especially wher improved transport methods and communication techniques have been introduced, makes it imperative to give rural children education opportunities equal to those provided for urban children. (UNESCO, 1934-1977, p. 212)[4].
As recomendações da UNESCO explicitam as intencionalidades por meio das Leis Orgânicas. O Decreto nº 4.244 (BRASIL, 1942) refere-se ao ensino secundário – propedêutico e de acordo com o art. 1˚, uma das finalidades era “Dar preparação intelectual geral que possa servir de base a estudos mais elevados de formação especial”. O ensino secundário apresenta-se como um acesso ao ensino superior, principalmente para o sexo masculino. Mas,especificamente nesse documento não há referência ao rural ou às populações que habitam o campo.
O Decreto nº 8.529, de 1946, que dispõe da organização do ensino primário, explicita no art. 15 que “A duração dos períodos letivos e de férias será fixado segundo as conveniências regionais, indicadas pelo clima, e, zonas rurais, atendidas, quanto possível, os períodos de fainas agrícolas” (grifo nosso), e faz menção ao calendário escolar, bem como aos ciclos da agricultura nas áreas rurais, não trazendo especificações das disciplinas. O documento busca fazer aproximações com as realidades do rural.
O Decreto nº 8.530, de 1946, Lei Orgânica da Escola Normal, na referência sobre o curso de regentes de ensino primário, especificamente no art. 7º, traz que “§ 1º O ensino de trabalhos manuais e das atividades econômicas da região obedecerá a programas específicos, que conduzam os alunos ao conhecimento das técnicas regionais de produção e ao da organização do trabalho na região” (grifo nosso). Neste ponto, percebe-se que os programas específicos estavam vinculados à produção, ou seja, uma preocupação com a industrialização agrícola, no sentido de capacitar os sujeitos para as novas técnicas que chegavam ao campo para atender ao modelo que estava vigente, sendo as primeiras iniciativas da denominada revolução verde[5], atualmente representada pelo agronegócio.
No período pós-Segunda Guerra Mundial, os documentos da UNESCO (1934-1977) trazem orientações intituladas “Educação e Segurança Nacional”, ou seja, houve uma mudança no rol de preocupações, em que os países da América Latina estavam dentro do círculo das inquietações, representado principalmente nas áreas rurais, pelo início dos movimentos de reivindicações dos camponeses sobre o direito à terra, dando origem à formação das Ligas Camponesas do Brasil. De acordo com Morais (2012, p. 22), “O retorno do país ao regime de garantias democráticas (em 1945), interrompido pela ditadura de Vargas, propiciou uma grande mobilização de massas camponesas na maioria dos estados brasileiros”. Aparecem as contradições que estavam latentes e a terra era vista como um meio de inclusão dos sujeitos que estavam expropriados da cultura, valores e produção da vida.
Processos e discussões
Durante o processo histórico, percebe-se que as Leis Orgânicas analisadas trouxeram orientações sobre o conhecimento da realidade agrícola, mas no sentido de exploração da agricultura. E a educação passa a ser necessária com a implantação inicial da industrialização do país e na contenção da imigração do campo para a cidade. Nesse processo, a educaçãoruralé vista como um fator para o desenvolvimento, com a intencionalidade de formação de capital humano no espaço de expansão do capital agrícola, em atendimento ao modelo que se fortalecia.
Ao olhar o processo em si dentro do contexto e no período histórico em que os acontecimentos foram registrados, existem contradições entre educadores e gestores, tanto na política nacional como na regional. Havia contradição entre a função da escola rural pensada pelo Estado e na perspectiva dos educadores, mas com a influência das orientações nacionais existem intencionalidades diferentes. Nesse contexto, o sujeito que habita o rural adquire invisibilidade, pois não estava presente na articulação entre diferentes contextos, produzindo políticas desconectadas, com os sujeitos sendo um alvo e não atores.
Neste aspecto, a totalidade requer uma imersão histórica, que possibilita o desvelar de múltiplas contradições que a constituem, como: educacionais, econômicas, sociais e a própria história. Nos caminhos da educação rural, existe uma totalidade maior representada pelo Estado e as intencionalidades deste durante o período histórico estudado que podem ter distintos graus de apreensão da realidade, por meio dos documentos acessados durante o desenvolvimento do artigo.
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Pour citer cet article
Référence électronique : Maria Elisabeth Blanck Miguel, Silvana Cassia Hoeller, “As contradições da história da educação rural no Brasil”, Educatio [En ligne], 11 | 2021. URL : https://revue-educatio.eu
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* Professora Doutora do curso de pós-graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Email: maria.elisabeth@pucpr.br
** Professora Doutora da Universidade Federal do Paraná. Email : silvanahoeller@gmail.com
[1] A produção cafeeira declinara, em volume, comparados os decênios de 1901-1910 e 1911-1920, de 130,6 milhões de sacas para 120,5 milhões. Mas o preço por saca aumentou no decênio, levando a uma superprodução. Em 1925 produziu-se 25 milhões e se consumiram 21,6 milhões, e em 1929 a produção foi de 38 milhões, com consumo de 23 milhões, desembocando na crise (SODRÉ, s/d, p. 13).
[2] O recenseamento de 1920 assinala a existência, no estado de São Paulo, de 136.135 operários brasileiros e 93.130 estrangeiros; estes preponderam na capital (SODRÉ, s/d, p. 25).
[3]A Associação Brasileira de Educação, conhecida comoABE, foi fundada em 1924 por Heitor Lyra da Silva (NAGLE, 1976, p. 123). Sua atuação se dava por meio de Conferências Nacionais de Educação, a partir de 1927, formando os pensadores educacionais do país (ABE, 2016).
[4]Considerando a semelhança crescente do país com o modo de vida urbano, especialmente com a melhoria dos métodos de transporte e técnicas de comunicação, torna imperativo dar às crianças rurais oportunidades de Educação iguais àquelas oferecidas às crianças urbanas(UNESCO, 1934-1977, p. 212).